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Mensagem: Citado hoje pela crônica, sempre alta, do mestre Manoel Hygino, do jornal Hoje em Dia (nome dado por Wander Piroli), creio que toda a história pode ser revisitada - nos termos de G. Rosa. ´Convosco recomponho: revenho ver´: Na noite em que deveriam partir Paulo Narciso * No dia 4 de setembro de 1971, Judith Malina, teatróloga e militante anarquista, hoje com 81 anos, residente em Nova Iorque, escreveu no Diário que recolhe os acontecimentos de sua vida desde os 20: “- 7h30m: Apertem os cintos. (...) Nossos passaportes nos foram devolvidos com um carimbo preto enorme – EXPULSO - Ah, Brasil não foi em vão que te amei” Publicado com exclusividade mundial pelo jornal “Estado de Minas”, em julho e agosto daquele ano, o jornal assim apresentou o Diário, cuja exibição parcial fez rilhar os dentes da censura no auge do regime ditatorial: “Como peça literária, lembra a melhor corrente dos escritores americanos, uma literatura sem ênfase, contando o que pretende contar, sem apelação, nem efeito demagógico. Um relato, entre Hemingway e Malamud, a nostalgia de uma situação perdida, a realidade de sua situação vivida”. Trinta e sete anos nos separam daqueles dias de abertura do Festival de Inverno de Ouro Preto. Relembrá-los, ir de regresso, é doloroso exercício. Primeiro, porque a leitura deste livro, que catapulta para a história páginas de jornal que serviram de trincheira à resistência, traz de volta amargas lembranças. Dos dias do medo, ensombrecidos pelo estado policial instaurado para fazer valer a vontade e concepção única das coisas, e da vida. A tirania. Doído recuo, de quatro décadas, nos faz aceitar que vencida a noite da ditadura, a última, não foi muito o que conseguimos avançar em conquistas libertárias. Caminhamos, mas ainda pouco. Sonhávamos na juventude com o Brasil do futuro, que vimos à nossa frente, ao alcance das mãos. Mas o Brasil do futuro não chegou, não chega, parece que não chegará; insiste em escapar de nós. Medonhos dias e noites aqueles, escuros. No entanto, o ai que vazasse das prisões, e vazava apesar da repressão e da censura, o ai podia ser recolhido e multiplicado como tambores dispersos de uma floresta. O gemido passava pela porta dos cárceres, vinha dos subterrâneos e dos porões, e era recolhido, e era ouvido; e uma rede de compaixão se estendia, acima das ideologias. Hoje, que não há restrições nominais à liberdade, que o clamor é permitido e estimulado, já não há – paradoxo - quem nos ouça com conseqüência. O insidioso rebuço do estado paira sobre a nação. A inversão que desembarcou com as Caravelas em cinco séculos mudou de nome e de nuanças, mas prossegue sob variado disfarce. O estado escancha sobre a nação, sufoca-a; dela servindo-se, quando servir é o seu fundamento. No tempo em que a liberdade entre nós foi proscrita, o choro do embate, do revés, o da luta mesmo em desvario, era percebido, transpunha o manto do silêncio. Hoje, quando falar é livre, não há quem nos ouça. O estado fixa-se, rearruma-se novamente acima da nação, incontrastável, confirmando o dito do Império de que nada mais se assemelha a um conservador do que um liberal no governo. Mas, é do Diário de Judith Malina que devemos nos ocupar aqui. Voltemos a ele. Era jovem repórter. Tinha 20 anos. Havia acabado de chegar da natal Montes Claros, já com cinco anos de reportagem. Era grande a fila de estudantes de jornalismo para serem contratados. Fui encaminhado à cobertura policial em tempo recorde. Ninguém menos do que o genial escritor Wander Piroli era o nosso editor. O mais premiado entre os repórteres de Minas de todos os tempos sentava-se ao lado, ensinava, com o eterno cigarro fumegando nos lábios. Chamava-se Fialho Pacheco. A Editoria de Polícia, historicamente destinada a ser a mais acocorada do jornal, pela genialidade do seu editor, pela inquietação dos seus liderados, invertia as posições, a ponto de atrair a atenção e certo pasmo das demais. Foi ao anoitecer que chegou a notícia. Os membros do Living Theatre haviam sido presos em Ouro Preto. Ângelo Oswaldo, hoje curiosamente prefeito da outrora Vila Rica, era colega da Editoria Política e veio pressuroso – lembro-me bem – advertir de que aquela prisão transpunha o ambiente policial. Julien Beck e sua mulher Judith Malina e toda a troupe internacional reconhecida como o grupo de teatro de vanguarda mais importante do planeta acabavam de ser presos. Vagas acusações. Eram cabeludos e mal-cheirosos; não gostavam de banhos. Seriam depravados, usariam drogas, mas nenhuma foi encontrada com eles, jovens artistas de variadas nacionalidades que depois de soltos, nos anos seguintes, ascenderiam ao topo da carreira em seus países de origem. Presos e soltos em questão de horas, foram novamente trancafiados. Uma intrigante, vistosa seta (de tinta branca, recente) no porão da residência apontava para o chão. A polícia disse que cavucou e encontrou maconha. Provisão denunciada por uma seta atribuída aos que tinham o máximo interesse em ocultá-la... Foi o que bastou. Os teletipos espalharam a notícia pelo mundo, da prisão de um grupo que, acusado de ser mal-cheiroso, depravado, dado ao uso de drogas, tinha o costume de ler os clássicos da poesia grega e compêndios de política. Subversivos! - acrescentou denúncia. O Diário de Judith Malina que este livro reproduz e conserva para a história, tal qual foi publicado pelo jornal, conta a bizarrice deste folhetim. Hoje é até capaz de fazer rir; naqueles dias, causou espanto, calafrios, medo. O tom da escrita é sereno, meigo, poético. Gentil até com os carcereiros, os acusadores. (Sempre admiti que Judith, por razões óbvias, deliberadamente baixou o teor da narrativa para que mais não pesassem a mão sobre eles. Hoje, observo que não. Falou nela o sentimento que chamamos de cristão, mas Judith, nascida na Alemanha, é judia). O conteúdo é do humanismo de filosofia anarquista que fez do Living Theatre o grupo teatral de vanguarda mais importante do mundo, mesmo após a morte do seu fundador, Julian Beck, em 1985, nos Estados Unidos. O Dops – ´Delegacia de Ordem Política e Social´ - era a prisão política de Minas mais temida, assim com os cárceres de Juiz de Fora, onde ficava o comando militar. Reler os fragmentos do Diário de Judith Malina, como acabo de fazer, restaura o desalento que impregnou um período da nossa história, não tão distante quanto desejaríamos. Mas tem o poder de despertar a recordação de uma mulher pequenina, afável, e de seu Julien, amoroso casal, e da filha de 4 anos, que dos pais com um aceno entre grades despediu-se, levada pela avó paterna para os Estados Unidos. A incansável censura, às vezes dissimulada em cordialidade de ocasião, não reagiu à publicação e a abafou porque a repercussão foi imediatamente escorada pela imprensa internacional. E como o Diário foi publicado, como submergiu dos porões? Nas dezenas de entrevistas com o casal, especialmente na companhia escorreita do repórter do Jornal do Brasil, Itamar de Oliveira, soubemos que Judith mantinha no cárcere o hábito de escrever o seu Diário, tomado aos 20 anos. Solícita, amorosa, encantadora, falei-lhe reservadamente da possibilidade de publicar os relatos últimos, e ela assentiu, com olhares receosos. As bases para que o documento deixasse a enxovia pelas mãos do seu agente literário, que acabava de chegar dos Estados Unidos, foram definidas numa manhã de folga, no Hotel Normandy, onde o norte-americano se hospedara. As folhas em inglês eram-me passadas pelo editor, no hotel, e o jornal encomendou a tradução. Em série, dia após dia, ocupavam página inteira, com chamadas de capa, tudo reproduzido pelo “O Jornal”, do Rio, líder da cadeia associada, então majoritária no Brasil. A publicação do Diário a cada nova manhã, debaixo do visível desconforto da censura, assegurava o seu prosseguimento no dia seguinte. O jornal, visto frequentemente como conservador, ousava; não recuou, não se intimidou, e demarcou uma posição da qual retroceder seria impensável. - Amor. Caminhávamos nas ruas como leprosos. Estou com medo. Tenha coragem. Eu te amo. Nós venceremos. Horror. Deus. Pobres. Vômitos. Pulgas. Escuro. Romeu e Julieta na prisão. Beijos de Adeus. Preces. Anoitece. Teatro. Brasil. Mezuzá. Amanhecer. Eu e Tu. Melancolia. Saudades. Brandura. São palavras recorrentes deste depoimento que a história recolhe e novamente agita. Em julho e agosto de 1971 dezenas de vezes fomos a Ouro Preto, para as audiências do processo. Os presos viajavam num velho ônibus, com batedores de motocicletas à frente e policiais distribuídos pelo ônibus, com ajuda de cães, entre eles o célebre “Dólar”, o mais temido. Sempre atrás do comboio policial seguíamos no fusca azul do jornal, acreditando ingenuamente que podíamos de alguma sorte representar uma garantia para os prisioneiros. Gente cujo crime, a rigor, foi abandonar a glamorosa Europa para bailar e cantar nas ruas com os pobres de Ouro Preto. Judith registrou: “Em procissão, viajamos por entre as magníficas montanhas. Espantados, depois de um mês de cadeia, pela amplidão do céu, pela magnificência da terra de Deus, da qual a mão do homem nos isola. Julien e eu trazíamos trabalho (os livros), mas o que podíamos fazer era apenas fitar sonhadoramente o mundo imenso, as montanhas áridas, a glória do céu claro com nuvens acima de nós, o sol tépido de inverno da beleza subtropical.” O juiz belicoso, o rumor crescente da repercussão internacional, o exacerbamento do regime sob o comando do general Garrastazu Médici, tudo indicava que o processo se arrastaria, prolongando idas e vindas a uma Ouro Preto invernal, apinhada de estudantes. Estudantes que ora aplaudiam a passagem do ônibus com os cativos, ora os contemplavam em silêncio tão profundo que os parecia libertar com os olhos, ali onde a cabeça de Tiradentes, erguida numa gaiola, foi prévia e sombria advertência aos que ousaram desafiar o estado. Aconteceu que a Europa se mobilizou vigorosamente em torno do “Comitê Européen de Défense du Living Theatre”. De lá partiam manifestações exigindo do governo brasileiro a imediata libertação da troupe. A veemência da condenação – sempre enfatizando que “este l’ unedes compagnies théâtrales lês plus célèbres et lês plus importantes du monde” – embaraçava a diplomacia do Brasil em todos os países. Pediam “la libération immédiate de tous lês menbres de la troupe” nomes conhecidos como os de Jean-Paul Sartre, Pierpaolo Pasolini, Alberto Moravia, Jean-Luc Godard, Jean Genet, Michel Foucault, Umberto Eco, Júlio Cortazar, Bernardo Bertolucci e centenas de outros intelectuais de reconhecimento internacional, freneticamente mobilizados. Tornara-se insuportável para o governo brasileiro manter o Living preso, por falta de banho, por serem sujos e mal-cheirosos, quem sabe viciosos e até “subversivos” . Foi no meio da audiência, na tarde azulada e fria de uma Ouro Preto envolvida pelo Festival de Inverno, que o cochicho percorreu o salão do fórum, lotado como sempre. Advogados, meirinhos, acusadores e defensores, todos de cenho franzido se reuniram diante do juiz. Trocaram palavras apressadas, que logo revelaram o acontecido. Acossado e para se ver livre das críticas, o governo militar acabava de assinar o decreto de expulsão do Brasil de todo o grupo. O ambiente de agitação e temor subitamente se desfez. O pano desceu sobre a cena burlesca, de gazetilha. Nem tristeza, nem alegria; nenhuma comemoração. Estupefação talvez. Pelo entardecer, seguimos o ônibus de volta pela última vez, em silêncio. Ao descer no Dops, já de noite, Julien Beck e Judith Malina nos abraçaram, com lágrimas. Ela pouco conseguiu falar. Julien, no dia seguinte, com solenidade que reservou para o que ia dizer, fixou as palavras e as pronunciou duas vezes: - Esta é uma casa de horrores ! - Es-ta é uma ca-sa de hor-ro-res ! – escandiu bem as palavras. Foi seu adeus. No dia posterior, já deslocado para outra cobertura pelo jornal, pois o grupo seria embarcado para o Rio e, de lá, expulso e deportado do Brasil, soube por Itamar de Oliveira que perdi o que talvez tenha sido o momento mais alto da história que juntos vivemos, aos 20 anos de muita esperança neste País do futuro. Julien Beck e Judith haviam sido mantidos no temido prédio do Dops, na avenida Afonso Pena, por todo o tempo. As mulheres foram encaminhadas à penitenciária feminina e os homens dispersos por mais de um xadrez. Na noite em que deveriam partir, reunidos todos num mesmo lugar, eles fizeram um circulo no pátio da prisão. Ao luar, debaixo de respeitosa, muda e reverente assistência dos policiais, que espontaneamente se afastaram, ergueram uma canção. A celebração começou com um murmúrio, que se foi alteando, como um cântico tribal que a noite invadiu e ocupou longamente. Despediam-se da prisão, despediam-se do Brasil. O Brasil que mereceu de Judith Malina a incontida declaração de amor que abre as primeiras linhas destes dolorosos recuerdos. (Anos depois, de volta a M. Claros, em doce auto-desterro na própria terra, soube que Julien Beck morreu. Judith Malina uma vez voltou ao Brasil. Mantém-se ativa nos Estados Unidos, com o mesmo grupo. Ao morrer Sartre por sua vez, jornais e revistas destacaram que foi na prisão do Living Theatre, em 1971, que o filósofo pai do existencialismo mais se ocupou de uma Questão ligada ao Brasil.
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